segunda-feira, 26 de março de 2018

Quando um país deixa de ‘aprender a saber fazer’ *


A gestão moderna aconselha as organizações a adopção de uma gestão por objectivo a todos os níveis. Os objectivos, neste contexto, devem ser específicos, mensuráveis, atingíveis, realista/virados ao resultado, com tempo de execução definido. Apresentado desta forma, os objectivos servem de incentivo na busca incessante do melhoramento contínuo do produto ou serviço prestado. Contudo, no sector público em Angola existe um outro tipo de cultura visível e bem enraizado, i.e. a gestão por consultoria.

Da actual polémica entorno da SONANGOL chamou-nos a atenção os gastos com consultoria externa incorridos pelas sucessivas administrações, tendo no período de 2014 à 2017 totalizado 539.2 milhões de dólares americanos. Ficamos especialmente impressionados com o facto destes gastos terem tido lugar numa empresa que tem, a muitos anos, um programa de bolsas de estudo, através do qual formaram-se muitos quadros em várias áreas do saber. Como justificar esta duplicação de esforço, especialmente em tempo de crise?

Um outro exemplo de gastos com consultoria é-nos dado pelo Programa de Apoio à Produção Diversificação de Exportações e Substituição de Importações (PRODESI) apresentado como a luz no fundo do túnel da diversificação económica em Angola. Na página 46 do documento indicasse que cada Ministério deverá disponibilizar pessoal para ‘liderarem na execução dos programas das fileiras’ e se prevê que a nível da Unidade Técnica, apesar dos recursos do Ministério da Economia e Planeamento, sejam contratados consultores para apoiarem a sua coordenação. Lesse também no documento que a nível da execução se faça recurso a consultores. Então, a quem deveremos atribuir o mérito do PRODESI[1]?

Nos nossos trabalhos de campo em Angola temos constatado que muitos dos técnicos colocados nos vários ministérios sabem o que deve ser feito. Contudo lamentam, quase sempre, a falta de visão e oportunidade por parte da chefia. Estes quadros reclamam pelo constante recurso a consultoria externa (incluindo a estrangeira), que muitas vezes apenas vem repetir aquilo que os especialistas internos já haviam assinalado. Estamos conscientes, que poderá haver sempre a necessidade de se contratar especialistas mais experientes para projectos específicos e mais exigentes. Mas o que se verifica no sector público em Angola é um recurso quase que patológico, dado ao exagero, que não permite a criação de capacidades a nível das instituições nacionais. Neste ponto salta a vista a notícia sobre a SONANGOL, pelo que, não ficamos surpresos quando lemos a constatação do antigo PCA da SONANGOL “Deixamos de aprender a ‘saber fazer’ e aprendemos a ‘contratar/subcontratar’”.

A quando da polémica sobre o suposto interesse do Executivo angolano em contratar 4.000 professores de Cabo Verde, ouvimos vozes contra mas também ouvimos aqueles que defendiam que era necessário reconhecer a falta de qualidade do ensino em Angola. Independentemente das motivações vale, ainda assim, perguntar: Não faria mais sentido o Executivo contratar 10, 20 até mesmo 100 formadores experientes para darem formação e ajudarem a melhorar a qualidade do ensino ao invés de contratar 4.000 professores para fazerem o trabalho completo? Qual das opções seria mais sustentável?

Analisando o Resumo Geral da Despesa Orçamentada por Natureza Económica do OGE verificasse que entre 2013 e 2017 foi orçamentado, para Serviços de Estudo, Auditoria e Consultoria, em média 90.788 milhões de Kz (414 milhões de USD[2]) ano e foram gastos, entre 2013 e 2015 (até onde existem dados disponíveis), 100.950 milhões de Kz (460 milhões de USD2). Apesar do actual Chefe do Executivo, João Lourenço, ter dito no seu último discurso sobre o Estado da Nação que estava apostado em “investir na qualificação e dignificação dos funcionários públicos, através de um investimento sério na sua capacitação e motivação profissional” existem 74.542.440.814 Kz (340 milhões de USD2) orçamentados no OGE 2018. Como se pode ver o fetiche da consultoria é muito mais preocupante do que parece.

Mas o impacto poderia ser maximizado se parte deste valor fosse disponibilizado, por exemplo, em forma de fundos para a investigação aplicada a nível das universidades em Angola. Desta forma estas instituições teriam a oportunidade de desenvolverem investigação visando dar respostas a questões pertinentes, assegurando um efeito multiplicativo na economia. Mesmo que estas instituições requisitassem especialistas estrangeiros para alguns dos projectos haveria sempre uma componente de transmissão de conhecimento/formação de capacidades internas. Havendo necessidade de executar o mesmo trabalho uma segunda vez poder-se-ia prescindir desse gasto ou ao menos reduzir.

Nas nossas pesquisas[3]sobre a história do desenvolvimento económico de países como a Singapura, Coreia do Sul identificamos que houve uma preocupação com a formação de quadros mas muito mais ainda com a necessidade de se dar a esses quadros oportunidades de aplicarem no país os seus conhecimentos. Estes países foram capazes de ultrapassar a ‘mentalidade de grupo’[4] introduzindo um sistema de recrutamento, para as principais instituições públicas, com base na meritocracia. Desta forma foram recrutados para o Economic Development Board na Singapura e o Economic Planning Board na Coreia do Sul, os melhores e mais experientes quadros existentes nestes países e nas suas diásporas. A lição que se tira destes exemplos é que não se promove a transformação estrutural de um país com base na consultoria externa. Claro que terá havido recurso a consultores estrangeiros, mas não nos níveis que verificamos em Angola.

Num outro texto4 indicamos que o Executivo precisava ser pragmático na busca de soluções, sem perder de vista a sustentabilidade das mesmas. O recurso exagerado a consultoria inibe a criação de capacidades internas, pelo que, ao actual Executivo vale perguntar: Quando as instituições de um país deixam de ‘saber fazer’ o que delas se espera, a quem devemos atribuir a responsabilidade?

*Texto inicialmente publicado no jornal Expansão 16 Março.

[1]Lendo a secção V ‘Recursos e Orçamentação do Programa’ deduz-se que este programa será executado essencialmente por consultores.
[2] @ USD 1=219 Kz câmbio na banca comercial actualizado 13 Março, fonte: http://www.kinguilahoje.com/#services
[3]Wanda, F. (2016) ‘Africa Quest for Economic Diversification: Opportunities for Singapore Businesses in Angola’. Report FEC-UAN, Luanda.
[4]Wanda, F. (2018) ‘Não importa a cor do gato, o que importa é se ele sabe caçar ratos! Expansão, Edição 460, 16 Fevereiro.


quarta-feira, 7 de março de 2018

Não importa a cor do gato, o que importa é se ele sabe caçar ratos!*


Do actual debate sobre a estratégia de saída da crise, fica-se com a impressão de que o Executivo angolano pretende levar acabo reformas sem reformistas. A confusão é tal que alguns experts pedem a vinda do FMI (e das suas medidas neoliberais). Outros dizem que o problema está na ausência de ‘adeptos’ da escola neoclássica na actual equipa económica. Pois bem, hoje vamos ilustrar que mais do que ancorar as suas políticas de desenvolvimento numa ideologia específica, o Executivo ganharia mais se elas fossem simplesmente pragmáticas i.e. capazes de produzirem os resultados desejados. 

A economia neoclássica é um método e não uma ideologia. Trata-se de uma visão de como os mercados funcionam, baseando-se num estudo sobre como o conceito da ‘mão invisível’ de Adam Smith gera uma alocação eficiente de recursos. Dependendo dos pressupostos de como um mercado livre, desregulado pode gerar um resultado socialmente benefício, os modelos neoclássicos podem justificar o planeamento centralizado (Oskar Lange[1]), intervenção do estado para gerir as políticas macroeconómicas, especialmente aquelas ligadas a demanda agregada (Keynes) ou políticas voltadas a liberalização dos mercados (Milton Friedman). Para o caso de Angola, parece ser consensual que o país não precisa de planeamento centralizado. Todavia, mantem-se a controvérsia sobre a eficácia (ou não) de uma política económica mais intervencionista. Isto faz com que políticos e experts adoptem uma mentalidade de grupo i.e. “expressão unânime da vontade do grupo à qual o indivíduo contribui por maneiras das quais ele não se dá conta, influenciando-o, desagradavelmente sempre que ele pensa ou se comporta de um modo que varie de acordo com os pressupostos básicos”[2].

Esta mentalidade de grupo tornasse mais exacerbada na ausência de uma clara distinção entre cargos políticos e cargos técnicos. Por exemplo, o cargo de Ministro é normalmente um cargo político i.e. dificilmente um partido que vence uma eleição convidaria um não partidário, que talvez não se revisse no seu programa de governo, a ocupar esta posição. Todavia, um cargo de Secretário de Estado e/ou de Director Nacional deveria ser, como acontece em outros países, um cargo técnico em que o acesso é por mérito. Infelizmente nos países em desenvolvimento predomina a ideia de que o vencedor (de um processo eleitoral) deve ficar com tudo mesmo que, na sua ‘côr’ partidária, não tenha os melhores técnicos para determinadas posições.

Num contexto de desenvolvimento na presença de países já desenvolvidos, a história do desenvolvimento económico de países como os EUA, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, até mesmo o curto processo de industrialização de Angola no período colonial, nos mostra que contrariamente ao que nos sugerem hoje, alguns experts e políticos, o Estado não foi um mero “regulador e incentivador” [3], teve sim um papel preponderante. Isto porque o papel do Estado numa economia já desenvolvida difere do papel do Estado num contexto onde se está a criar uma economia capitalista virada ao mercado, que caracteriza Angola e outros países em África. É preciso termos em conta que a mentalidade de grupo, em Angola, tem manchado a qualidade das intervenções do Estado.

Como resultado, o Executivo denota graves problemas que traduzem-se, por exemplo, (1) na elaboração de planos irrealistas (feito por pessoas que não têm depois que lidar com as consequências i.e. consultores externos), (2) incapacidade de disciplinar aqueles “grupos económicos angolanos conscientes e fortes”[4], que seriam a “garantia da nossa independência”4 e (3) falta de disciplina i.e. ausência de uma componente de condicionalidade com cláusulas explícitas de penalização para os governantes e gestores públicos, em caso de incumprimento das metas definidas. Só assim compreendesse, por exemplo, ausência de um balanço do PND 2012-2017; que o controlo da banca por angolanos não traduz-se na participação directa destes em projectos no sector primário e secundário da economia; que algumas empresas públicas falharam a meta de terem “as contas homologadas sem reservas” em 2017 definida pelo PCA do ISEP, ver Expansão 21 de Julho 2015. 

Este último facto parece justificar a medida neoliberal do Executivo, via Plano Intercalar, que prevê o redimensionamento e possível privatização do património empresarial público. Apresentado desta forma ficasse com a impressão, incorrecta, de que a existência de um sector empresarial público é nocivo a economia. Todavia, como explicar que em Singapura, país que ocupa o 3º lugar no Índice de Competitividade Global 2017 – 2018, 90% das terras do país são propriedade do Estado; 85% das casas são propriedade do Estado; e 22% do PIB é produzido por empresas públicas[5]! Taiwan apostou nas pequenas e médias empresas e deu certo. A Coreia do Sul apostou nos grandes conglomerados, chamados Chaebols, e … também deu certo.

Estes exemplos mostram que não existe uma única ‘receita’ para se alcançar, de forma sustentável, altos índices de desenvolvimento i.e. liberalização do mercado versus activismo do Estado; pequenas e médias empresas versus conglomerados. Existem estudos que mostram que na Coreia do Sul apesar da corrupção e outros males no início, houve incentivos (i.e. oportunidade para o enriquecimento) e disciplina (i.e. cobrança de resultados e penalizações) por parte da liderança do país. À luz dos últimos acontecimentos, acreditamos que em Angola poderá ter havido muito incentivo e pouca disciplina i.e. na linguagem popular ‘muito pão e pouco pau!”  Pelo que, o Executivo em Angola mais do que abraçar uma ideologia, pensamos nós, precisa de adoptar um modelo próprio capaz de gerar incentivos e disciplina. Afinal, como argumentava o arquitecto do ‘milagre’ chinês Deng Xiaoping ‘não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos. Isto sim é pragmatismo no seu melhor!   

*Uma versão anterior foi publicada pelo jornal Expansão: http://www.expansao.co.ao/artigo/91874/nao-importa-a-cor-do-gato-o-que-importa-e-se-ele-sabe-cacar-ratos-?seccao=5

[1] Lange, O. ‘On the Economic Theory of Socialism: Part One’. The Review of Economic Studies, Vol. 4, No. 1 (Oct., 1936), pp. 53-71.
[2] Bion, W. R. Experiências com Grupos. São Paulo: Imago Ed., 1975, pág. 57.
[3] Wanda, F. (2017) 'Solução da crise económica angolana? Disciplina, disciplina, disciplina!- Convidado', Expansão, Edição 421, 12 Maio.
[4] Mensagem à Nação do Pres. José Eduardo Dos Santos, por ocasião do 40º Aniversário da Independência Nacional, 11 Nov. 2015.
[5] Economista Ha-Joo Chang  numa entrevista no jornal El País, Jan. 2018.