quinta-feira, 19 de abril de 2018

Depois da acumulação primitiva pode vir … acumulação por ‘expropriação’!*


Segundo o jornal Expansão de 2 de Março o Executivo poderá, já em Abril, ter as condições criadas para o redimensionamento do sector empresarial público. O processo de alienação deverá ocorrer através da bolsa de acções. Apesar do muito que se possa ganhar com um processo de privatização, em termos de eficiência e produtividade, é preciso termos em conta que um processo de privatização de um bem público pode também gerar o que o pesquisador Britânico David Harvey denomina de “accumulation by dispossession[1] (trad. livre: acumulação por expropriação).

Na sua obra O Capital, capítulo 27 [da versão Inglesa], Karl Marx nos apresenta uma interpretação do processo histórico ocorrido na INGLATERRA que ditou uma mudança no sistema de produção e acumulação de capital (i.e. riqueza) vigente. Marx nos explica como o parlamento Inglês através do “Acts for enclosures of Commons” (trad. autorização para vedação dos espaços públicos) ditou simultaneamente uma mudança no acesso à terra para agricultura e produziu uma nova classe de “agricultores sem terra”. Estes viram-se obrigados a procurar outras formas de subsistência nomeadamente emprego na então indústria nascente. De facto, na óptica de Marx, foi graças a existência desta classe de “agricultores sem terra”, traduzida em força de trabalho excedentária, que permitiu a ascendência do capital e como tal a criação do sistema de produção capitalista virado ao mercado. A este fenómeno Marx chamou de “acumulação primitiva do capital”. O mesmo fenómeno ocorreu nos demais países europeus e depois em outras partes do mundo, como na América do Norte, tendo-se finalmente espalhado pelo resto do mundo através do processo de colonização.

A acumulação primitiva representa assim a génesis do sistema de produção capitalista. Todavia, esse fenómeno é recorrente. Para essa segunda vaga do mesmo fenómeno Harvey (2005) chama de ‘acumulação por expropriação’, ao passo que o economista egípcio Samir Amin, num seminário que tivemos o prazer de assistir na SOAS, Universidade de Londres, chamou de “acumulação da acumulação primitiva do capital”. Hoje para explicar esse mesmo fenómeno existe um termo muito mais bem aceite: “Privatização”!

No futuro processo de privatização urge estarmos consciente que não se poderá alcançar o que a alienação do bem comum produziu, por exemplo, no Reino Unido durante o governo conservador de Margaret Thatcher, i.e. ‘capitalismo popular’ onde os cidadãos passam a deter riqueza para as gerações vindouras. Isto porque em Angola, o processo de acumulação primitiva ainda não está consolidado daí que o mesmo continua a ser reinventado. Para este novo processo de privatização a estratégia passa por fazer via BODIVA, com vista a evitar-se favorecimentos. Todavia, a “acumulação da acumulação primitiva do capital” de Samir Amin indica-nos um processo onde os que ganharam e hoje detêm uma considerável vantagem inicial acabam eles mesmos de consolidar este processo de acumulação. A diferença é que desta vez a acumulação processa-se seguindo as regras do mercado, mas atenção que não deixa de ser injusto. Isso porque no momento da oferta pública das empresas a privatizar estarão em condições de fazer a melhor oferta muito dos que beneficiaram do anterior processo de acumulação primitiva. 

É imperioso, por um lado, que se crie um mecanismo que limite este acesso. A experiência do processo de privatização na Rússia, pós-comunismo, mostra que apesar dos trabalhadores das empresas a privatizar terem sido alocados uma quota-parte das acções, por falta de capital estes acabaram por prescindir deste acesso a favor dos oligarcas. O mesmo aconteceu em Angola nos anos 90. Por outro lado, priorizar o capital estrangeiro poderá tornar Angola numa economia exportadora de dividendos. E caso as empresas privatizadas não estejam viradas à exportação de bens e serviços, Angola corre o risco de aumentar os constrangimentos na balança de pagamento.

Apresentado desta forma, compreendesse que o processo de privatização pode criar o que o processo de acumulação primitiva do capital criou na Inglaterra i.e. uma classe de indivíduos que perde uma fonte segura de renda e de reprodução social, ficando exposta as regras (muitas vezes selvagens) do mercado. Contudo, ao contrário dos agricultores sem terra Ingleses, que encontraram alternativa de emprego e subsistência na indústria emergente, em Angola lamentavelmente essa alternativa é inexistente. Como fizemos questão de assinalar num outro texto[2], apesar da aposta na criação de perímetros irrigados para agricultura, pólos industriais, na reabilitação de estradas, vias ferroviárias, portos e aeroportos, no aumento da oferta de utilidades como energia e água, é assinalável, no OGE para 2018, a previsão de um crescimento baixo de apenas 1.8% para a indústria transformadora, aquele sector capaz de gerar uma economia de escala. O Executivo arrisca-se a repetir o impacto negativo do processo de privatização dos anos 90, caso este aspecto não seja acautelado.

A experiência de privatização no Reino Unido pode informar o caso de Angola. O sucesso naquele país deveu-se muito as reformas implementadas visando a livre concorrência entre as empresas. Para o caso de Angola estimular a livre concorrência interna pode muito bem servir de antecâmera a uma possível integração regional. Porém, mais do que assegurar receitas para o Estado, o processo de privatização que se avizinha não pode descurar o tratamento a dar a força de trabalho. Afinal, as empresas a privatizar estão muitas delas na condição que se encontram essencialmente devido a uma gestão danosa levada acabo por gestores ligados a cor partidária que sustenta o Executivo em Angola, podendo por isso não vir a ter lugar a devida responsabilização. Pelo que, uma questão precisa ser colocada: Em que momento a economia angolana estará suficientemente dinâmica para absorver essa mão-de-obra excedentária?

*Uma versão anterior foi originalmente publicada no Jornal Expansão Edição 466, 29 Mar. http://www.expansao.co.ao/artigo/93441/depois-da-acumulacao-primitiva-pode-vir-acumulacao-por-expropriacao-?seccao=5

[1] Harvey, D. (2005) A Brief History of Neoliberalism, OUP, p.159
[2] Wanda, F. (2018) ‘Emprego, juventude e desemprego: Será 2018 diferente?’ Expansão, 5 Janeiro.