Segundo o jornal Expansão
de 2 de Março o Executivo poderá, já em Abril, ter as condições criadas para o
redimensionamento do sector empresarial público. O processo de alienação deverá
ocorrer através da bolsa de acções. Apesar do muito que se possa ganhar com um
processo de privatização, em termos de eficiência e produtividade, é preciso
termos em conta que um processo de privatização de um bem público pode também gerar
o que o pesquisador Britânico David Harvey denomina de “accumulation by dispossession”[1]
(trad. livre: acumulação por expropriação).
Na sua obra O
Capital, capítulo 27 [da versão Inglesa], Karl Marx
nos apresenta uma interpretação do processo histórico ocorrido na INGLATERRA
que ditou uma mudança no sistema de produção e acumulação de capital (i.e.
riqueza) vigente. Marx nos explica como o parlamento Inglês através do “Acts for enclosures of Commons” (trad.
autorização para vedação dos espaços públicos) ditou simultaneamente uma
mudança no acesso à terra para agricultura e produziu uma nova classe de “agricultores
sem terra”. Estes viram-se obrigados a procurar outras formas de
subsistência nomeadamente emprego na então indústria nascente. De facto, na
óptica de Marx, foi graças a existência desta classe de “agricultores sem
terra”, traduzida em força de trabalho excedentária, que permitiu a ascendência
do capital e como tal a criação do sistema de produção capitalista virado ao
mercado. A este fenómeno Marx chamou de “acumulação primitiva do capital”. O
mesmo fenómeno ocorreu nos demais países europeus e depois em outras partes do
mundo, como na América do Norte, tendo-se finalmente espalhado pelo resto do
mundo através do processo de colonização.
A acumulação primitiva representa assim a génesis do
sistema de produção capitalista. Todavia, esse fenómeno é recorrente. Para essa
segunda vaga do mesmo fenómeno Harvey (2005) chama de ‘acumulação por expropriação’,
ao passo que o economista egípcio Samir Amin, num seminário que tivemos o
prazer de assistir na SOAS, Universidade de Londres, chamou de “acumulação da
acumulação primitiva do capital”. Hoje para explicar esse mesmo fenómeno existe
um termo muito mais bem aceite: “Privatização”!
No futuro
processo de privatização urge estarmos consciente que não se poderá alcançar o
que a alienação do bem comum produziu, por exemplo, no Reino Unido durante o
governo conservador de Margaret Thatcher, i.e. ‘capitalismo popular’ onde os
cidadãos passam a deter riqueza para as gerações vindouras. Isto porque em
Angola, o processo de acumulação primitiva ainda não está consolidado daí que o
mesmo continua a ser reinventado. Para este novo processo de privatização a
estratégia passa por fazer via BODIVA, com vista a evitar-se favorecimentos.
Todavia, a “acumulação da acumulação primitiva do capital” de Samir Amin indica-nos
um processo onde os que ganharam e hoje detêm uma considerável vantagem inicial
acabam eles mesmos de consolidar este processo de acumulação. A diferença é que
desta vez a acumulação processa-se seguindo as regras do mercado, mas atenção
que não deixa de ser injusto. Isso porque no momento da oferta pública das
empresas a privatizar estarão em condições de fazer a melhor oferta muito dos
que beneficiaram do anterior processo de acumulação primitiva.
É imperioso, por
um lado, que se crie um mecanismo que limite este acesso. A experiência do
processo de privatização na Rússia, pós-comunismo, mostra que apesar dos
trabalhadores das empresas a privatizar terem sido alocados uma quota-parte das
acções, por falta de capital estes acabaram por prescindir deste acesso a favor
dos oligarcas. O mesmo aconteceu em Angola nos anos 90. Por outro lado,
priorizar o capital estrangeiro poderá tornar Angola numa economia exportadora
de dividendos. E caso as empresas privatizadas não estejam viradas à exportação
de bens e serviços, Angola corre o risco de aumentar os constrangimentos na
balança de pagamento.
Apresentado desta forma, compreendesse que o
processo de privatização pode criar o que o processo de acumulação primitiva do
capital criou na Inglaterra i.e. uma classe de indivíduos que perde uma fonte
segura de renda e de reprodução social, ficando exposta as regras (muitas vezes
selvagens) do mercado. Contudo, ao contrário dos agricultores sem terra
Ingleses, que encontraram alternativa de emprego e subsistência na indústria
emergente, em Angola lamentavelmente essa alternativa é inexistente. Como fizemos
questão de assinalar num outro texto[2],
apesar da aposta na criação de
perímetros irrigados para agricultura, pólos industriais, na reabilitação de
estradas, vias ferroviárias, portos e aeroportos, no aumento da oferta de
utilidades como energia e água, é assinalável, no OGE para 2018, a previsão de um
crescimento baixo de apenas 1.8%
para a indústria transformadora, aquele sector capaz de gerar uma economia de
escala. O Executivo arrisca-se a repetir o impacto negativo do processo de privatização dos
anos 90, caso este aspecto não seja acautelado.
A experiência de
privatização no Reino Unido pode informar o caso de Angola. O sucesso naquele
país deveu-se muito as reformas implementadas visando a livre concorrência
entre as empresas. Para o caso de Angola estimular a livre concorrência interna
pode muito bem servir de antecâmera a uma possível integração regional. Porém,
mais do que assegurar receitas para o Estado, o processo de privatização que se
avizinha não pode descurar o tratamento a dar a força de trabalho. Afinal, as
empresas a privatizar estão muitas delas na condição que se encontram
essencialmente devido a uma gestão danosa levada acabo por gestores ligados a
cor partidária que sustenta o Executivo em Angola, podendo por isso não vir a
ter lugar a devida responsabilização. Pelo que, uma questão precisa ser colocada:
Em que momento a economia angolana estará suficientemente dinâmica para
absorver essa mão-de-obra excedentária?
*Uma versão anterior foi originalmente publicada no Jornal Expansão Edição 466, 29 Mar. http://www.expansao.co.ao/artigo/93441/depois-da-acumulacao-primitiva-pode-vir-acumulacao-por-expropriacao-?seccao=5
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