Este ano a Fundação
Mo Ibrahim realizou o seu Fórum Anual sobre Governação em África tendo como
pano de fundo o relatório “Serviços Públicos em África”[1] apresentado e discutido em
Kigali, Ruanda. No fórum ficou patente que não
é possível falarmos de um serviço público que vá de encontro as
expectativas dos cidadãos em África sem
falarmos em servidores públicos comprometidos
com esta missão.
Neste aspecto podemos
dizer que o Ruanda é um dos países africanos que tem feito grandes progressos.
Ao solicitarmos o visto de entrada, por exemplo, fomos informados que
poderíamos fazer online e assim
procedemos tendo recebido uma mensagem de que iriamos ter resposta em 3 dias.
Sabendo da realidade africana ficamos expectantes. Recebemos o visto em menos
de 24 horas já que a solicitação fora feita as 16h00 do dia anterior, ficamos
positivamente ‘escandalizados’! Afinal notamos que é possível termos serviços
públicos com qualidade em África. Foi ai que nos lembramos da nossa experiência no tratamento de um Assento de
Nascimento na 1ª Conservatória de Luanda. Ai fomos confrontados com o facto de
que este documento APENAS pode ser solicitado na 2ª e 3ª feira (e como fomos a
5ª feira não seria possível). Quando questionamos se este era um procedimento
formalizado (já que numa outra conservatória constatamos uma outra realidade)
foi-nos dito que cada conservatória faz a sua política de funcionamento! Apesar
de termos pago o serviço urgente,
que deveria levar 3 dias, apenas recebemos
os documentos solicitados uma semana
depois, sem qualquer pedido de desculpa!
Num outro momento experimentamos este ano o novo serviço que a Administração Geral Tributária
colocou a disposição do público para o pagamento do IPU. Foi com bastante
satisfação que vimos a funcionar na perfeição o atendimento via call centre e o respectivo pagamento via
Multicaixa. Ligamos e recebemos todas as instruções. Ao irmos pagar tivemos uma
dificuldade, voltamos a ligar e nos foi esclarecido o problema. Após o
pagamento recebemos o comprovativo por e-mail. Pela primeira vez foi um prazer pagar este imposto! Estes dois exemplos
mostram que apesar dos vários transtornos que o cidadão enfrenta quando
solicita os serviços de algumas entidades públicas em Angola ainda assim,
existem aquelas apostadas em melhorar a sua prestação para o bem do cidadão.
A reforma do Estado
que o Executivo angolano pretende levar acabo, não pode estar limitada a "descentralização de
poderes, a implementação gradual das autarquias e a municipalização dos
serviços em geral" conforme defendeu
o Presidente João Lourenço na Cerimónia
de Investidura. Isso porque não existe
uma relação linear i.e. causa-efeito entre descentralização e melhoria dos serviços
prestados. Pelo que, essa reforma deveria ter como fim último tornar os serviços públicos mais alinhados com as
aspirações dos cidadãos. Os exemplos que apresentamos acima mostram-nos que
esta meta é viável e necessária. Afinal, não podemos aceitar que uma
instituição pública, cuja missão
deveria ser servir o cidadão de uma forma eficiente, repasse para o mesmo as suas ineficiências como vimos no caso da 1ª
Conservatória. Se por um lado compreendemos que possa existir falta de pessoal
para se atender a alta demanda de serviço, por outro lado esperamos que os
prestadores de serviços públicos estejam comprometidos com a melhoria contínua
dos seus processos e
consequentemente com o aumento da satisfação
do cidadão.
Neste contexto, o Ministério
da Justiça e Direitos Humanos deveria, por exemplo, pensar em automatizar esse serviço. Tudo passa
pela existência de um Portal onde o cidadão faz o registo e adquire uma senha de
acesso e por esta via pode obter, para além do Registo de Nascimento, vários
serviços como a emissão do BI, Passaporte, Atestado de Residência, sem precisar
sair de casa! Atenção que estamos a falar de uma plataforma que Países africanos
com o PIB inferior ao de Angola disponibilizam aos seus cidadãos.
Todavia, como chegamos
ao ponto dos servidores públicos em África, e muito particularmente em Angola,
deixarem de responder as aspirações daqueles que servem? Na busca de uma
resposta a esta questão, para o caso de Angola, compreendemos que quando os
servidores públicos sabem que fraude
e negligência não têm impacto na
perca da confiança partidária nem
trazem consigo outras medidas mais severas, pelo caminho estes deixam de
‘resolver os problemas do povo’ e passam antes a usar tais posições para
servirem-se primeiro. Isso, como se da satisfação
das suas necessidades/ambições pessoais fosse resultar necessariamente um bem
socialmente útil. Desta forma o acesso e promoção na função pública deixam de
ter como base critérios transparentes,
como o mérito e competência comprovada, priorizando-se a militância e ligações partidárias.
O fórum identificou igualmente
um outro desafio premente nos
serviços públicos em África. A idade mediana dos servidores públicos é maior do
que a dos seus pares no sector privado e acima da idade mediana da população
que servem. Este distanciamento geracional
acaba por ser problemático já que os servidores públicos mostram-se
desconectados e não compreendem as necessidades e exigências das suas
populações mais jovens. Segundo Hailemariam
Desalegn, ex-Primeiro Ministro da Etiópia no evento, o facto do governo Etíope
não ter compreendido devidamente as aspirações da juventude terá igualmente
contribuído para sua resignação visando forçar uma reforma do Estado.
Enfim, o desejado
milagre económico em Angola pode ficar comprometido caso não se encetar uma
reforma do Estado visando melhorar a
qualidade do serviço prestado ao cidadão. Dificilmente conseguir-se-á atrair
investimento privado (nacional ou estrangeiro) tendo como interlocutor
servidores públicos descomprometidos com a qualidade do serviço disponibilizado.
Tudo isso exige pensar num novo
contracto social que inclui (mas não se limita) a mudança de mentalidade, busca
incessante pela melhoria do serviço prestado, maior profissionalismo e menor
partidarismo, espírito de missão,
integridade e acima de tudo responsabilidade
e responsabilização do servidor público,
aspectos que ainda não vemos emergir na cultura institucional que o actual
Executivo pretende estabelecer em Angola. Afinal, se num contexto de uma
relação comercial a experiência nos
ensina que a percepção do cliente afecta a realidade da empresa, no que toca
aos serviços públicos, a percepção
dos cidadãos é a realidade do
Estado!
* Uma versão anterior foi publicada
inicialmente no Jornal Expansão Edição 472 http://www.expansao.co.ao/artigo/95954/na-prestacao-de-servicos-p-blicos-a-percepcao-dos-cidadaos-e-a-realidade-do-estado-?seccao=7
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