sexta-feira, 18 de maio de 2018

Na prestação de serviços públicos, a percepção dos cidadãos é a realidade do Estado!*


Este ano a Fundação Mo Ibrahim realizou o seu Fórum Anual sobre Governação em África tendo como pano de fundo o relatório “Serviços Públicos em África”[1] apresentado e discutido em Kigali, Ruanda. No fórum ficou patente que não é possível falarmos de um serviço público que vá de encontro as expectativas dos cidadãos em África sem falarmos em servidores públicos comprometidos com esta missão.

Neste aspecto podemos dizer que o Ruanda é um dos países africanos que tem feito grandes progressos. Ao solicitarmos o visto de entrada, por exemplo, fomos informados que poderíamos fazer online e assim procedemos tendo recebido uma mensagem de que iriamos ter resposta em 3 dias. Sabendo da realidade africana ficamos expectantes. Recebemos o visto em menos de 24 horas já que a solicitação fora feita as 16h00 do dia anterior, ficamos positivamente ‘escandalizados’! Afinal notamos que é possível termos serviços públicos com qualidade em África. Foi ai que nos lembramos da nossa experiência no tratamento de um Assento de Nascimento na 1ª Conservatória de Luanda. Ai fomos confrontados com o facto de que este documento APENAS pode ser solicitado na 2ª e 3ª feira (e como fomos a 5ª feira não seria possível). Quando questionamos se este era um procedimento formalizado (já que numa outra conservatória constatamos uma outra realidade) foi-nos dito que cada conservatória faz a sua política de funcionamento! Apesar de termos pago o serviço urgente, que deveria levar 3 dias, apenas recebemos os documentos solicitados uma semana depois, sem qualquer pedido de desculpa!

Num outro momento experimentamos este ano o novo serviço que a Administração Geral Tributária colocou a disposição do público para o pagamento do IPU. Foi com bastante satisfação que vimos a funcionar na perfeição o atendimento via call centre e o respectivo pagamento via Multicaixa. Ligamos e recebemos todas as instruções. Ao irmos pagar tivemos uma dificuldade, voltamos a ligar e nos foi esclarecido o problema. Após o pagamento recebemos o comprovativo por e-mail. Pela primeira vez foi um prazer pagar este imposto! Estes dois exemplos mostram que apesar dos vários transtornos que o cidadão enfrenta quando solicita os serviços de algumas entidades públicas em Angola ainda assim, existem aquelas apostadas em melhorar a sua prestação para o bem do cidadão.

A reforma do Estado que o Executivo angolano pretende levar acabo, não pode estar limitada a "descentralização de poderes, a implementação gradual das autarquias e a municipalização dos serviços em geral" conforme defendeu o Presidente João Lourenço na Cerimónia de Investidura. Isso porque não existe uma relação linear i.e. causa-efeito entre descentralização e melhoria dos serviços prestados. Pelo que, essa reforma deveria ter como fim último tornar os serviços públicos mais alinhados com as aspirações dos cidadãos. Os exemplos que apresentamos acima mostram-nos que esta meta é viável e necessária. Afinal, não podemos aceitar que uma instituição pública, cuja missão deveria ser servir o cidadão de uma forma eficiente, repasse para o mesmo as suas ineficiências como vimos no caso da 1ª Conservatória. Se por um lado compreendemos que possa existir falta de pessoal para se atender a alta demanda de serviço, por outro lado esperamos que os prestadores de serviços públicos estejam comprometidos com a melhoria contínua dos seus processos e consequentemente com o aumento da satisfação do cidadão.

Neste contexto, o Ministério da Justiça e Direitos Humanos deveria, por exemplo, pensar em automatizar esse serviço. Tudo passa pela existência de um Portal onde o cidadão faz o registo e adquire uma senha de acesso e por esta via pode obter, para além do Registo de Nascimento, vários serviços como a emissão do BI, Passaporte, Atestado de Residência, sem precisar sair de casa! Atenção que estamos a falar de uma plataforma que Países africanos com o PIB inferior ao de Angola disponibilizam aos seus cidadãos.

Todavia, como chegamos ao ponto dos servidores públicos em África, e muito particularmente em Angola, deixarem de responder as aspirações daqueles que servem? Na busca de uma resposta a esta questão, para o caso de Angola, compreendemos que quando os servidores públicos sabem que fraude e negligência não têm impacto na perca da confiança partidária nem trazem consigo outras medidas mais severas, pelo caminho estes deixam de ‘resolver os problemas do povo’ e passam antes a usar tais posições para servirem-se primeiro. Isso, como se da satisfação das suas necessidades/ambições pessoais fosse resultar necessariamente um bem socialmente útil. Desta forma o acesso e promoção na função pública deixam de ter como base critérios transparentes, como o mérito e competência comprovada, priorizando-se a militância e ligações partidárias.

O fórum identificou igualmente um outro desafio premente nos serviços públicos em África. A idade mediana dos servidores públicos é maior do que a dos seus pares no sector privado e acima da idade mediana da população que servem. Este distanciamento geracional acaba por ser problemático já que os servidores públicos mostram-se desconectados e não compreendem as necessidades e exigências das suas populações mais jovens. Segundo Hailemariam Desalegn, ex-Primeiro Ministro da Etiópia no evento, o facto do governo Etíope não ter compreendido devidamente as aspirações da juventude terá igualmente contribuído para sua resignação visando forçar uma reforma do Estado.

Enfim, o desejado milagre económico em Angola pode ficar comprometido caso não se encetar uma reforma do Estado visando melhorar a qualidade do serviço prestado ao cidadão. Dificilmente conseguir-se-á atrair investimento privado (nacional ou estrangeiro) tendo como interlocutor servidores públicos descomprometidos com a qualidade do serviço disponibilizado. Tudo isso exige pensar num novo contracto social que inclui (mas não se limita) a mudança de mentalidade, busca incessante pela melhoria do serviço prestado, maior profissionalismo e menor partidarismo, espírito de missão, integridade e acima de tudo responsabilidade e responsabilização do servidor público, aspectos que ainda não vemos emergir na cultura institucional que o actual Executivo pretende estabelecer em Angola. Afinal, se num contexto de uma relação comercial a experiência nos ensina que a percepção do cliente afecta a realidade da empresa, no que toca aos serviços públicos, a percepção dos cidadãos é a realidade do Estado!



[1] Link para o relatório: http://mo.ibrahim.foundation/

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