quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Descentralização? Sim! Mas, com autonomia financeira sustentável!*


Recentemente fomos convidados a reflectir sobre os desafios da autonomia financeira que as futuras autarquias deverão gozar, por formas a poderem corresponder as expectativas. Todavia, o actual debate parece ter sido sequestrado pelos políticos e centrasse muito no processo eleitoral. Um aspecto que parece ‘esquecido’ e que precisa ser tido em conta é a sustentabilidade desta mesma autonomia.

Em Moçambique[1], por exemplo, as autarquias criadas em 1997 eram inicialmente financiadas por três vias (1) receitas provenientes de serviços prestados e licenças atribuídas; (2) transferências fiscais do Governo Central (1,5 por cento das receitas totais); (3) contratação de créditos com limitação[2]. Ainda assim as autarquias tiveram dificuldades de gerarem as suas receitas, em função do aumento da população e consequente aumento da demanda por serviços, ficando estas muito dependentes das transferências fiscais.

A ideia de descentralizar para assegurar uma melhoria na condição de vida das populações, para o caso de África, veio como uma exigência das organizações financeiras internacionais, i.e., como condição para estes países acederem a ajuda internacional para o desenvolvimento. Com o fracasso do pacote de reformas introduzidas através dos chamados programas de ajustamentos estruturais[3], criou-se uma ‘Agenda para Boa Governação’[4] i.e. medidas que uma vez implementadas poderiam então garantir o desenvolvimento dos países. Ao Estado ficou reservado, no âmbito desta agenda, o papel de assegurar o funcionamento dos mercados, a participação da sociedade civil, prestação de contas bem como proteger o direito a propriedade.

Sem dúvidas a descentralização do poder traz grandes benefícios. Ela melhora a identificação das necessidades das populações, facilita a oferta de bens e serviços, a capacidade de executar e controlar, favorece a democratização e promove a transparência. Todavia, é imperioso que isso seja feito de forma sustentável. 

No contexto angolano discute-se mais se a implementação das autarquias deverá ser de forma gradual ou global e perde-se de vista a necessidade desta descentralização e consequente autonomia financeira ser sustentável a longo prazo. Vale realçar que a eleição apenas resolve o ‘problema do cágado na árvore’, i.e., o futuro autarca não poderá alegar que foi colocado naquela posição, ficando implícita a ideia de não prestar contas a população local. Porém, fica por se discutir, por exemplo, a necessidade de quadros qualificados para elaborarem (e gerirem) orçamentos que vão de encontro as aspirações dessas populações. Neste aspecto Angola pode beneficiar das experiências do Brasil e Moçambique, onde optou-se pela elaboração de orçamentos participativos.

Em Angola pensa-se financiar as autarquias através das receitas provenientes do Imposto Predial Urbano, Sisa e taxa de circulação bem como derramas. Olhando para a sustentabilidade dessa autonomia financeira o município do Lobito, pelas fontes de financiamento indicadas, está melhor que, por exemplo, o Cubal. As transferências fiscais do Executivo podem jogar um papel preponderante sendo maior para o Cubal do que para o Lobito. Porém, com o aumento da população segue o aumento da demanda por serviços. Conhecendo a forma de cobrança do IPU e que o aumento das receitas da taxa de circulação implica um aumento de veículos em circulação, prejudicial para o ambiente, aumentar essas receitas pressupõe um aumento da renda da população.

Esta possibilidade é, contudo, contrariada pelo fraco crescimento médio do PIB de 3,0% cf. PDN 2018-2022. Tendo em conta a redução significativa da actividade empresarial (o INE indica que estavam em actividade apenas 46.096 empresas em 2016) podemos prever sérias dificuldades para as futuras autarquias. O petróleo tem ainda um peso considerável nas receitas fiscais do Estado, porém, o preço não depende do Executivo. Nestas condições fica difícil assegurar a melhoria das condições de vida das populações.   

Enfim, ao avançar com a criação das autarquias o Executivo mostra vontade de querer promover uma maior participação da população na gestão pública, o que fortalece o processo democrático em Angola. Todavia, ao apresentar uma estratégia incapaz de gerar um crescimento médio do PIB acima dos 7%, para os próximos 5 anos, o Executivo arrisca-se a tornar financeiramente insustentável o processo de descentralização que se propõe.

*Inicialmente publicado no Jornal Expansão, Edição 482 de 20 de Julho 2018


[1]Nguenha, E. (2009) ‘A Primeira Reforma Fiscal Autárquica em Moçambique’, IDeIAS Boletim nº 16, 24 Junho.
[2]Crédito de curto prazo para atender situações de tesouraria devendo ser reembolsado no exercício fiscal em que é contraído.
[3]Cf. Wanda (2017) ‘Solução para recuperação da economia? Repatriar o capital de angolanos no estrangeiro já – Convidado’, Expansão, Edição 440.
[4]World Bank, World Development Report: The State in a Changing World (Oxford: OUP, 1997), pp. 19-38.

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